Perspectivas e expectativa dos raros na Pandemia: o que as famílias de pessoas com doenças nos ensinam sobre cidadania no enfrentamento da COVID-19
28/02/2021
Por Glaucia Barros, Heytor Marques e Ednalva Neves
Entrevistada: *Gláucia Karina Ribeiro Barros (G) - Comissão Científica da FEDRANN
Entrevistadores: **Ednalva Neves (E) e ***Heytor Marques (H)
Data da entrevista: Data 22/07/2020
Local da entrevista: Via Google Meet
*Glaucia Karina Ribeiro Barros
Membro da FEDRANN (Federação de Associações de Doenças Raras do Norte, Nordeste e Centro Oeste do Brasil). Mãe de pessoas com Doenças Raras (Mucopolissacaridose) e Delegada da AFAG.
**Ednalva Maciel Neves
Professora de antropologia pelo Departamento de Ciências Sociais, PPGS e PPGA/CCHLA da UFPB. Integrante do Grupo de Pesquisa em Saúde, Sociedade e Cultura (GRUPESSC/UFPB) e MANDACARU/UFAL. Graduada em Medicina, fez seu mestrado em sociologia e doutorado em antropologia social.
***Heytor de Queiroz Marques
Doutorando em Antropologia Social no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Licenciado em Ciências Sociais e Mestre em Antropologia realizados na Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Participa do Grupo de Pesquisa em Saúde, Sociedade e Cultura (GRUPESSC).
As pessoas com doenças raras estão reconhecidamente entre aquelas em situação de vulnerabilidade biológica, em razão da doença, e social, porque a grande maioria das famílias com pessoas com doenças raras não tem boas condições de vida, como nos contou Glaucia Barros. Mãe de uma pessoa com Mucopolissacaridoses/MPS, integrante da FEDRANN, ela nos fala sobre o risco e medo das famílias, bem como sobre as iniciativas de instituições e profissionais que adotam a causa das doenças raras contribuindo para a garantia da vida.
Essa conversa conta com a sensibilidade e a autoria de Glaucia Barros na defesa da cidadania e no respeito à Vida das pessoas com MPS.
ENTREVISTA:
H: Então, Gláucia, deixa eu te perguntar uma coisa sobre esse momento então. Como é que está sendo as interferências que a pandemia está causando na vida das pessoas com MPS? Qual é a realidade que tu está acompanhando dessa interferência?
G: Olha, são diversas. Diversas interferências e de diversas formas. Por exemplo, aqui na Paraíba, o pessoal de Campina Grande, que tem o HU, que tem uma sala exclusiva para MPS que é separada das enfermarias e tudo, tem uma realidade; e que mora em Campina Grande e que é o centro, não é?! O que foi que aconteceu com eles, deram uma parada inicial e depois eles começaram a fazer lá na sala, em horários… se estendeu o horário, abriu mais um dia, para diminuir o fluxo de pessoas, no início. Mas no início, todo mundo parou, todo mundo parou, a Paraíba parou geral, e algumas pessoas no Brasil pararam e outras continuaram indo para os hospitais.
Eu inclusive enlouqueci, porque eu comecei a perguntar aos pais, não é, de fora da Paraíba, se eles estavam fazendo (a infusão) … E eu dizia: “olha, eu não quero influenciar, não…”, mas eu queria, sabe?! [risos]. “Eu não quero influenciar, não, mas André não vai fazer…”, porque a chance de sobreviver a uma pandemia, a uma infecção por coronavírus é nula, é zero, não existe como eles sobreviverem a uma doença dessa. Então, é melhor perder a infusão do que isso. Aí eu dizia: “pelo menos essa é a minha opinião”. E algumas pessoas que começaram a ir - não por causa disso, porque um monte de gente começou a falar a mesma coisa -, começou a não ir mais.
O início foi uma coisa assim apavorante, porque as pessoas não tinham noção… porque, a gente que é de doença rara, vou falar só Mucopolissacaridoses, a gente quer que a infusão seja, assim, a prioridade das prioridades e, às vezes, não consegue ver que tem coisas que é muito perigosa, que é muito mais perigosa do que não fazer o tratamento. E aí a ficha foi caindo.
A gente não pode sair de casa, e, quando, por exemplo… e essa é uma realidade que eu estou pensando como é que vai ser com as outras pessoas. Por exemplo, Heytor e Ednalva, quando as aulas da universidade começarem, que o Pai de André começar a sair para dar aula, o que é que a gente vai fazer? Porque o isolamento vertical... eu não acredito no isolamento vertical. Eu só acredito no horizontal, para tudo. Mas não vai chegar uma hora que vai ter que parar? Que vai ter que continuar de verdade? E essa pandemia é uma coisa que ela, ela seleciona, é seleção natural, quem é que vai continuar vivo quem é que não vai continuar vivo. Tem doença rara? É do grupo de risco? Sinto muito, você vai ficar para trás, mas o mundo tem que continuar. É isso que eu estou sentindo.
Eu não quero nem parar muito para pensar, mas, quando eu paro para pensar, é isso que eu estou vendo. O que é que as pessoas do grupo de risco vão fazer, os que são universitários? Os que estão em colégio? Como é que essas pessoas vão voltar? Elas não vão poder voltar até ter vacina. Meu último período do curso vai ser esse. Eu não vou voltar… eu falei para o coordenador do curso: “eu não vou poder assistir aula presencial, porque eu não posso correr o risco de contaminar André”. Entendeu? Quando tiver vacina é que a gente vai poder ter uma vida normal, porque que senão…
E: Doença rara está incluída no grupo de risco? Apareceu lá no protocolo do Ministério?
G: A gente não teve nada partindo do Ministério da Saúde, a gente teve apoio partindo principalmente de uma associação que é uma federação nacional que tem sede em São Paulo. Então a gente teve orientação. Os laboratórios vieram depois, não é, com suas orientações, mas, assim, foi fundamentalmente a sociedade civil que sustentou.
E: Então, eu acho que no final das contas quem tem dado realmente o apoio para todo mundo é o instituto, as associações e suas federações?
G: São as associações e as federações. E a Fiocruz, porque tem gente na associação de São Paulo, que é de lá, tem enfermeira, sabe?
H: Alguém já pegou... Covid?
G: Não, não. Graças a Deus não. Ninguém, ninguém. Que é outra preocupação, por exemplo, no caso da infusão em casa, a enfermeira que, assim, por exemplo, quando eu vou fazer, vou falar só em André para não parecer que eu não quero que faça em casa, porque na verdade eu quero, mas qual é a minha preocupação: uma enfermeira que está fazendo atendimento em outros hospitais em contato com todo mundo. Aí você vai abrir a sua casa, o quarto, o leito e aquela enfermeira vai cuidar de seu filho. A chance de contaminação é menor do que ele ir para o hospital, é, mas ela existe, e não é pequena. A gente tem que ter uma confiança nessa pessoa…
E: Em resumo, entendemos que as famílias estão, através de suas associações e federações, tomando suas iniciativas e garantindo isolamento; que na Paraíba, felizmente, ninguém pegou COVID; que a pessoa está tendo apoio das federações, das associações. Mas a ideia é garantir a manutenção da terapia enzimática em casa, para quem pode, não é? O centrinho do HU de Campina Grande estendeu seus horários, está fazendo, certamente, com horário agendado, para quem pode…
G: Exato. E o mesmo centrinho está fazendo atendimento domiciliar. Para quem não quer ir para sala, eles vão para casa do paciente e faz, elas vão e fazem. O apoio das médicas, o apoio das médicas tanto daqui de João Pessoa, que é a pediatra, como doutora Paula, lá em Campina Grande, e da enfermeira lá em Cajazeiras, da enfermeira no Congo, e da enfermeira de Monteiro, que eu esqueci o nome agora, foi fundamental, porque elas tomaram para si o problema, elas tomaram para si, não foi nem, assim, a FEDRANN, não foi a associação…
E: Então tem a ajuda dos profissionais…
G: Profissionais! Os profissionais se preocuparam com os pacientes. E as famílias. Juntou-se. Todo mundo, sabe? Foi incrível. Eu achei incrível. O posicionamento das enfermeiras, da enfermeira Lúcia.
E: Ei, Gláucia, você quer completar alguma coisa, dizer alguma coisa mais que a gente não perguntou, que você queira…?
G: É, eu acho, na verdade, eu digo assim, olhando com essa perspectiva da realidade atual, mas as coisas mudam tanto de um dia para o outro, e coisas tão impressionantes, tão inimagináveis acontecem que eu tenho essa esperança, sabe, eu tenho essa fé, essa confiança que… Eu acredito que a vacina vai chegar, eu acredito que a vacina vai dar certo, eu acho que... - eu estou falando sério, sério, do fundo do meu coração. Eu acho que não vai ser uma imunização de três meses apenas, e, se for, vai ser a primeira vez por três meses, mas a seguinte já vai ser maior porque eles vão desenvolver tecnologia rapidamente.
Então, eu acredito nessas coisas, eu não me vejo perdendo para a pandemia. Eu não vejo a gente perdendo, a gente, a comunidade dos raros, eu não nos vejo perdendo para isso. Porque a gente já caminhou tanto, a gente já caminhou tanto… A gente já conseguiu tratamento, a gente já conseguiu aprovar protocolo, a gente já conseguiu tanta coisa. Daqui há pouco, a gente vai conseguir quebrar patente. Então, eu não acredito que a gente vai perder para uma coisa...
A maioria, a grande maioria [não tem boas condições de vida]. E Deus está botando a mão, sabe, Ednalva?! Deus está protegendo de uma maneira tão especial. Porque tem coisas que a gente sabe que a família não teria condição de sozinha proteger. Mas o que foi que os pais fizeram? Eles agarraram os filhos, abraçaram… incrível. Olha, gente que mal sabe usar um celular, mas na hora da pandemia o que foi que eles fizeram, eles pegaram os meninos, botaram no braço, sabe como uma galinha e os pintinhos? Eles fecharam a criança, a pessoa, dentro deles e pronto, e o menino está protegido.
E: Gláucia, se a gente tivesse que dar um título para essa entrevista, qual seria o título que você daria?
G: [Respiro profundo] Eu não sei... [risos]
E: Doença raras e COVID?
G: Perspectivas dos raros na pandemia… não sei. Na verdade, eu estou lançando “um olhar para”, eu estou olhando para a situação agora e lançando um olhar para o futuro, não é? Então, eu queria deixar isso palpável no título… Que é a perspectiva e a expectativa… não sei, algo assim. Mas eu não tenho um título.
G: Eu estou feliz demais de ter falado com vocês também, de ter… Eu não tinha feito nenhuma reunião assim, desse tipo. Ninguém ainda para falar da gente, do que a gente está passando e do que a gente pensa também. Essa foi a primeira.
H: Que bom então!
E: É, pois é. Pois então, tá, Gláucia, muito obrigada, foi muito bom encontrar você dessa vez. Eu acho que foi muito melhor do que aquela vez lá, a gente tá muito mais próxima agora, por incrível que pareça. E Heytorzinho, é muito bom sempre lhe ver, viu?!
H: Ah, eu que agradeço e foi ótima nossa conversa.
G: Obrigada, gente. Obrigada a vocês dois pelo interesse, é muito caro isso para mim, é muito gratificante. Sempre que quiserem e sempre que precisarem, viu, podem contar comigo para conversar e tudo, para saber da gente, é muito importante para mim isso.