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Mães em pandemia: a dor à flor [cor] da pele

Christina Gladys Nogueira, Núbia Guedes, Patrícia Pinheiro

19 julho 2021

Como é ser mãe em meio à pandemia? É “padecer no paraíso" ou padecer em casa mesmo? E para aquelas que precisam trabalhar fora, como têm lidado com o acúmulo de atividades profissionais, diante da necessidade de sustentar financeiramente a família, e o cuidado, como o acompanhamento do ensino remoto dos filhos, ocasionado pela suspensão das aulas presenciais? A pandemia trouxe novos fatores de preocupação e desafios para as mães. Desde as gestantes como o medo de contrair o vírus, a falta de uma rede de apoio no pós- parto; as mães de crianças em idades escolares, mães de crianças com deficiência, mães solos, mães negras, mães de pessoas caracterizadas como grupo de risco, mães que cuidam das mães...


A intensificação das desigualdades se expõe na carga física e mental que as mulheres enfrentam. O que tem sido esse novo normal das mães na pandemia? A sobrecarga vivenciada pelas mães diante de um contexto pandêmico afetam fortemente a saúde mental das mulheres mães. Uma pesquisa realizada pela Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto (FMRP) da USP, demonstra que  63% das mães participantes tiveram sintomas de depressão no último ano. O mesmo estudo ainda aponta que 78% das mães relatam sentimentos de desconfortos e 34% tiveram sentimentos de insegurança, angústia, ansiedade e insegurança.


Segundo a pesquisa Atlas Político, encomendada pelo El País e divulgada em maio de 2021, 80% das mães brasileiras se sentem cansadas com a vida doméstica na pandemia, evidenciando uma palavra que se tornou recorrente para as mulheres neste período: sobrecarga. Esse mesmo índice entre os pais, diminui para 48%. Se, segundo o IBGE, as mulheres antes da pandemia dedicavam-se 20 horas para as atividades domésticas e os homens cerca de 10 horas, hoje essa distância tende a ser ainda maior.


O que temos visualizado durante a pandemia é que ela intensifica relações já precarizadas, sejam de trabalho, sejam nas mais cotidianas experiências na família. Durante o isolamento, há uma intensificação do estresse sofrido no atendimento de múltiplas demandas domésticas e profissionais que surgem e se acumulam. Nisso, o ato de cuidar e a tirania que permeia o mais comum dos costumes e valores sociais refletem na mulher, sobretudo, naquela que se insere na margem da sociedade: a mulher negra.


Nessa sociedade de desigualdades, segundo o IBGE (2018), 42% das mulheres negras não têm saneamento básico, na realidade gritante de que 63% das casas chefiadas por mulheres negras estão abaixo da linha de pobreza (IBGE, dados de 2018). Assim, os marcadores sociais inerentes à cor da pele, intensificados pela pandemia, atravessam a mulher, refletindo na vivência da maternidade de forma a dificultar e mesmo romper abruptamente a vivência de ser mãe. As mulheres negras, no cenário brasileiro, têm poucas condições de moradia, recebem baixos salários, enfrentando muitos trabalhos precarizados. Sendo assim, as mulheres negras têm mais obstáculos para exercer a maternidade de uma forma menos sofrível, tendo em vista que grande parte da sociedade brasileira é constituída de famílias compostas exclusivamente por mulheres, marcadas pela ausência do pai, essas mulheres são responsáveis pela manutenção e provimento da casa. Segundo dados apresentados pelo Instituto Think Eva, 63% das casas chefiadas por mulheres negras estão abaixo da linha da pobreza.


Mulheres e encarceramento


Para refletirmos sobre um dos desafios à maternidade enfrentados pela mulher, trazemos à reflexão a problemática social em torno da mulher prisioneira. Um estudo etnográfico realizado em uma prisão feminina de uma cidade nordestina observa que a prisão após pandemia impossibilitou a vivência da maternidade. Nesse estudo, que resultou na dissertação de Guedes intitulada Maternidade Compartilhada e Crianças Encarceradas: Etnografando o Dia de Domingo em um Presídio Feminino (2020), observou-se que para as mulheres presas a maternidade constitui um paradoxo de sofrimento e de resistência, tornando a prisão da mulher mais árdua que a do homem. Em tempo de pandemia, a maternidade foi empurrada para a  solidão, pois, por questões de biossegurança, o Estado restringiu a visita, assim, as mulheres não veem seus filhos, crianças, desde março de 2020.


Falar de maternidade na prisão é alcançar uma mulher ‘de cor’. As prisões brasileiras são construídas socialmente como espaço de segregação, um espaço em que a higienização social consiste a racionalidade do Estado. No mapeamento das prisões brasileiras realizado em março de 2020, do total de mulheres presas, 12.821 são mães de crianças até 12 anos. Das mulheres presas no Brasil, em sua maioria são jovem e com baixa escolaridade, sendo que 74% possuem filhos e 62% são solteiras (INFOPEN,  2018, com dados de 2016).


A ausência do Estado na vida destas mulheres faz com que tenham problemas diversos como os cuidados com os filhos. A única rede de apoio da mulher, geralmente, é feita por outra mulher. Na prisão etnografada, a rede de apoio dessas jovens mães de maioria considerável negra, de idade entre 18 e 25 anos, dá-se na maternidade compartilhada, ou seja, aquela exercida pelas “mainhas, mamães e mãezinhas”, delineada por Jaciara, mulher negra, 31 anos de idade, a maternidade “que confunde vó com mãe; mãe com vó” (GUEDES, 2020, p. 51). Nesse contexto, ser mãe é resistir às agruras do cárcere. A falta de políticas públicas intensifica a condição feminina das mulheres ligadas ao sistema prisional, extraindo a dignidade humana podendo ser entendida como uma extensão do castigo que atinge a toda família, nesse sentido, a todas as mulheres dessas famílias matrifocais (GUEDES, 2020).


A visita da família é parte da humanização da pena. A pandemia trouxe para as mulheres aprisionadas um sofrimento maior, uma vez que houve uma separação abrupta de suas crianças, causando fortes problemas emocionais (GUEDES, 2020). A pandemia legitima a racionalidade do Estado no castigo da proibição de visita.


Modo “mãe na pandemia”


A divisão sexual do trabalho na sociedade é permeada por reflexos do patriarcalismo. E nesse processo, a casa, o privado, as tarefas vinculadas ao cuidado foram socialmente construídas para a mulher. Nesse contexto, sob a base do patriarcalismo ainda emergem fenômenos que tiveram origem no período da escravidão; o gênero entrelaça-se à cor, à soma de marcadores sociais. Com isso, vemos que a pandemia não vem inaugurar o novo no âmbito social, mas vem escancarar as mazelas sociais que crescem em meio à falta de políticas públicas e o descaso com direitos para segmentos específicos, como as mulheres aprisionadas.


Nas dores e alegrias da maternidade com 24 horas de demandas, meses a fio, é importante não romantizar o amor materno e alertar para a desigualdade vivida pelas mães com sobrecarga de tantas tarefas. É necessário também, que cada vez mais políticas públicas contemplem as especificidades daquelas que são mães. Em busca de minimizar essa situação difícil observamos importantes iniciativas de apoio e fortalecimento das mulheres,   como ao exemplo dos  projeto: “Segura a Curva das Mamães”, “Mães da favela”, “Familia Apoia famílias", “Adote um mãe solo” (Instituto Think Eva, 2021).

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